Um ninho de entrevistas dedicado à actualidade da ilustração e banda desenhada nacionais.
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Um bater de asas para divulgar os nossos projectos e autores.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Mário Freitas, autor e editor de BD, faz um balanço do festival ANICOMICS LISBOA 2012



Como surgiu a ideia de criar o Anicomics? Quais os seus objectivos e a que público se dirige?
Enquanto alguém que participa activamente em eventos de BD há quase 13 anos, fui acumulando experiência e ideias muito concretas sobre a melhor forma de funcionamento de um festival. Não havia até então em Portugal um evento que congregasse de facto a vertente da BD ocidental com a da japonesa, integrando  comics, manga e cosplay; e esse foi provavelmente o ponto de partida do AniComics: fazer um festival transversal que abrangesse um leque diferenciado de público. Depois, sentia também que faltava design, faltava glamour, faltava modernidade aos festivais de BD e afins em Portugal. E tenho vindo progressivamente a adicionar esses pozinhos de beleza ao AniComics, porque a BD e os seus derivados são coisas belas, coisas em constante renovação, que não devem, não podem ficar colados a visuais datados e bafientos, e a ideias pré-concebidas do que um festival pode ou não abranger.

 
Este ano, na fase pré-festival, quais foram as diferenças mais significativas em relação aos exemplos anteriores? Sentiste que havia uma maior expectativa, fizeste as coisas de maneira diferente, tiveste mais apoios...?
Este ano tracei uma meta simples, logo desde o início: fazer o maior e melhor AniComics de sempre. Nesse sentido, todas as expectativas foram sendo geradas a partir daí. Não tenho dúvidas que atingi claramente essa meta, mas trabalhei muito para conseguir isso. Para esta 3ª edição, começou-se a tratar de tudo ainda mais cedo que o habitual e, só para terem uma ideia, os convites para o show de cosplay foram feitos logo após a edição do ano passado, com um ano de antecedência, portanto. De resto, dada a extensão das actividades no programa e a maior ambição geral deste, tive naturalmente de me rodear de mais gente para que tudo ficasse preparado a tempo.


Fala-nos um pouco da tua equipa, o grupo de pessoas que tornaram possível o festival. Como é que estão organizados?
Inicialmente, quase tudo parte da minha cabeça. As ideias para os espectáculos e actividades, a divisão dos espaços, os horários da programação, tudo. Sou bastante centralizador nesse aspecto, porque gosto de ter uma visão global e absoluta do que será o evento. Só depois dessa fase começo a trabalhar com outras pessoas no sentido de desenvolver as ideias ou ouvir alternativas melhores e, às vezes, totalmente inesperadas, como aconteceu com o Show Burlesco, cuja ideia partiu da Marisa Cruz, depois de a ter convidado para co-apresentar o evento comigo. Ela é um verdadeiro dínamo, capaz de pôr dezenas de pessoas a mexer e a fazer o que ela manda. Uma espécie de Mário Freitas, mas muito mais bonita e autoritária. Aliás, isto é curioso, porque o que acabei de dizer da Marisa se encaixa como uma luva na Fátima Pereira, a coordenadora de toda a equipa de voluntários que, por acaso, também é casada comigo. Acho que pelos vistos, no evento, tal como na vida, gosto de me rodear de mulheres fortes e com personalidade. Não posso deixar de mencionar, claro, a diva do AniComics, a Leonor Grácias, que esteve praticamente omnipresente ao longo do fim-de-semana, participando no show de cosplay, nos desfiles de moda, no show burlesco, e ainda deu um workshop e foi presidente do júri no concurso de cosplay. Ah, e faltou referir que foi uma espécie de relações públicas de luxo do evento e que ainda ajudou ao treino dos modelos para os desfiles.
Deixando de falar de pessoas bonitas e passando para aquelas que são apenas dedicadas e muito competentes no que fazem, tenho de destacar todo o exaustivo trabalho de som e luzes que foi realizado pelo Rogério Folgado, pelo Rodrigo Reis e pelo Rui Brandão. É certamente o trabalho mais exigente e menos visível no evento, sem o qual o AniComics não teria corrido tão bem. Destaco ainda o trabalho do Pedro Bragança na nova Gaming Zone e prometo-lhe, para o ano, melhores condições e melhor planeamento nessa área. A gaming zone, sendo uma estreia, é daquelas que ainda tem muito para melhorar e aperfeiçoar. Uma inovação que correu lindamente, sem quaisquer sobressaltos, foi a introdução do sistema de vouchers para os autógrafos com os autores convidados; o grande mérito aí foi do Hugo Silva, que soube organizar as filas de forma ordeira e impecável e evitar certos abusos e confusões ocorridos nos anos anteriores.
Na parte visual e promocional, todo o destaque vai para o Carlos Pedro, em quem confiei e com quem tratei de perto para a concepção do logo e do cartaz do AniComics. Eu já trabalho com o Carlos desde 2005, pelo que ele sabe bem o que o espera: muita troca de ideias, muita cabeçada na parede, puxões de orelhas até, mas no final o resultado será, certamente, o melhor possível entre várias soluções ou alternativas pensadas. Como é hábito, não fomos para a solução mais fácil ou óbvia e apostámos um bocadinho no risco, mas creio que a recepção dificilmente poderia ter sido melhor. Depois, foi adaptar esse visual do cartaz às necessidades específicas de um website, coisa que a Daniela Oliveira soube fazer de forma irrepreensível, aturando os meus constantes acrescentos e rectificações à programação.

Porquê a Biblioteca Orlando Ribeiro? Como começou esta parceria?
A ideia de realizar um evento na Orlando Ribeiro (BMOR) surgiu durante uma conversa com o Adalberto Barreto, que trabalhava então para o Núcleo do Livro e da Bibilioteca da Câmara de Lisboa. Eu já conhecia o espaço dum simpósio em que tinha participado, pelo que comecei logo a magicar o que seria possível fazer ali, contando desde o início com todo o apoio e entusiasmo dos responsáveis da bilbioteca (entusiamo que só tem crescido a cada edição, dado que nunca a BMOR levou tanta gente como nos dias de realização do AniComics). A Orlando Ribeiro tem excelentes valências, nomeadamente tudo o que está relacionado com o auditório; tem um óptimo palco, tem um sistema de luz e som bastante decente, tem camarins grandes, e tudo isso é fundamental quando se quer fazer um evento com uma forte componente de espectáculo e que não se resuma a ter uma dúzia de autores sentados durante horas a dar autógrafos; isso é importante, mas, se for tudo o que um festival tem para dar, então é manifestamente escasso, além de muito aborrecido.
A BMOR pode não ser um espaço muito grande - tendo em conta sobretudo a dimensão que o AniComics rapidamente atingiu - mas é muito versátil. A existência do auditório, do pátio exterior e do edifício da biblioteca propriamente dita, permite uma boa mescla de actividades sem ocorrerem atropelos ou sobreposições indesejáveis. Aquilo que conseguimos este ano, ficar com todo o espaço da BMOR ao serviço do evento, foi fulcral para o crescimento e para o sucesso da presente edição. Mesmo com um acréscimo brutal no número de visitantes, circulava-se muito mais à vontade por quase todo o lado, sem as enchentes ou constrangimentos dos anos anteriores; com uma excepção, e é essa a minha maior causa de preocupação para o futuro: a lotação do auditório. Entre 140 lugares sentados e outros tantos de pé, o espaço foi manifestamente exíguo para tanta gente que queria assistir a alguns dos espectáculos, em particular o burlesco e o cosplay. É uma situação de resolução complexa, pelo que não me vou alongar mais para já sobre o assunto.


Finalizado o evento, qual é o balanço que fazes do Anicomics? Quais os seus pontos mais positivos e menos positivos?
O balanço só pode ser óptimo, isso parece quase unânime. Mas, mais do que isso, o que me deixa satisfeito é que a aposta na diversificação foi mais do que ganha. Cheguei a ouvir pessoas questionarem o porquê dos desfiles de moda ou do show burlesco e o que tinha isso a ver com banda desenhada. Acho que é este tipo de mentalidade redutora que o AniComics nasceu para combater, vou ser franco. É por tanta gente ignorar a relação óbvia entre a BD, a moda e o design que certas bandas desenhadas ou eventos relacionados parecem parados no tempo, com os mesmos visuais e os mesmos tiques de há décadas. E isto tanto é válido para os autores que as fazem, como para os leitores que levam esses autores a continuarem a fazê-las.
Dito isto, passar de 800 e tal pessoas em 2011 para quase 1600 em 2012 demonstra bem o que o AniComics se começa a tornar e toda a onda de entusiasmo que gera à sua volta. Aliás, corrijam-me se estiver enganado, mas as reacções após o evento não têm paralelo em nenhum evento até aqui, mesmo num de maior envergadura como o Iberanime. Foram milhares de fotos, milhares de comentários nas redes sociais e, o mais espantoso de tudo isto, é que só li ou ouvi umas quatro ou cinco opiniões negativas, duas das quais de pessoas que nem sequer lá tinham estado.
Porém, nem tudo foi perfeito, pelo menos para o grau de exigência que coloco a mim mesmo e aos que comigo colaboram. Logo nos dias a seguir ao evento, elaborei uma lista de cerca de trinta tópicos com detalhes a melhorar ou ideias a implementar na próxima edição. Algumas são simples e fáceis de executar e irão certamente dificultar o surgimento de certos atrasos na programação. Outras há, como a questão do espaço do auditório, que não estica, e que não é possível tornear, mas vamos ver o que se pode fazer com mais uma dose de imaginação. Há ainda outra questão que me anda a causar um formigueiro terrível no céu da boca: sinto um divórcio, no mínimo suspeito, de uma certa faixa da BD nacional, em relação ao AniComics. E isto é tanto mais estranho, quanto o AniComics tem primado pela atenção permanente aos autores nacionais, nomeadamente da nova geração, aqueles tantas vezes esquecidos pelos festivais portugueses mais clássicos, muitas vezes por mera ignorância ou desconhecimento dessas organizações. É como se houvesse pruridos da parte desses autores, desse público, em misturarem-se com a faixa mais numerosa, mais ruidosa do manga e do cosplay. Dá-me sempre a ideia que se sentem mais confortáveis num “festival” vazio e sem a mais pequena ponta de festa, mas, lamento dizer, não contem com o AniComics para isso.


À vista de muitos visitantes, o evento foi considerado um verdadeiro sucesso. Para ti, quais fora as regras de ouro que possibilitaram esta realidade?
Muitos meses de trabalho, muita imaginação e criatividade, a experiência acumulada dos dois anos anteriores, e a capacidade e humildade para ouvir as críticas e sugestões que foram feitas nos anos anteriores, também. Quem me acusa de “arrogância” ou qualquer disparate do género, não me conhece, definitivamente, porque há duas palavras que eu tenho muito facilidade em pronunciar, que são “obrigado” e “desculpa”. E quem consegue congregar tanta gente, e tanta gente diferente, à sua volta, terá certamente de ter características pessoais que vão muito além desse tipo de baixa adjectivação. Entre staff, voluntários, autores, parceiros, modelos, cosplayers e dançarinos, o AniComics contou com o brilho e com o esforço de cerca de 200 pessoas que, na prática, fizeram o evento. É óbvio que tem de haver uma liderança, tem de haver uma visão, tem de haver um projecto, e não me vou pôr com falsas modéstias e negar que o AniComics é um evento à minha imagem. Quem quiser confundir isso com vaidade ou convencimento fique lá com o berlinde; confesso que isso começa a ser para o lado que me deito melhor. Se calhar conviria antes salientar que ter uma visão concreta confere uma coisa que tanta falta faz a criaturas da nossa praça: coerência. Ter coerência impede-nos de zigzaguear entre opiniões, entre locais, entre estratégias imediatistas desesperadas, entre inimigos imaginários criados para desculpabilizar os erros próprios. Mas adiante.
Retomando o tema das colaborações, saber rodear-me das pessoas certas para a execução do evento tem sido fulcral. Em primeira instância, nunca o poderia fazer sem a toda a dedicação e altruismo dos cerca de 40 voluntários que nos ajudaram este ano. Para além disso, ter pessoas-chave capazes de coordenar ou dinamizar áreas específicas como a gaming zone, o burlesco ou o cosplay foi fundamental para o grande evento que fizemos. É claro que de nada serviria todo o planeamento atempado ou a qualidade da programação, se depois não houvesse uma divulgação capaz de levar público ao evento. E aí, a utilização do facebook foi fundamental; custa-me como uma ferramento tão útil e com tantas potencialidades é, na maioria dos casos, usada apenas como veículo de propagação de inutilidades, falsas informações e mitos urbanos. Tenho igualmente de agradecer ao Nuno Amado pela excelente divulgação que foi fazendo no seu blog, nas semanas que antecederam o evento, e pela cobertura que deu durante a sua realização, que deu depois pano para mangas e um interessante debate. O “Leituras de BD” é, aliás, um óptimo pólo de discussão e debate sobre a BD em Portugal e não só, e tem essa grande virtude que é não ter medo de emitir opiniões, mesmo que tais possam não agradar a todos. Confesso que me irritam os blogs ou os sites que até cheiram a água oxigenada, de tão anódinos que são.
Outro dos “segredos” do AniComics é a componente emocional, a familiaridade e proximidade entre quem faz e quem visita o evento. Eu transponho para o festival a filosofia que desde sempre implementei na loja: enquanto outros têm “sócios” que são tratados pelo número, a Kingpin Books tem amigos que são tratados pelo nome. Tenho plena noção que nem todo o tipo de pessoas se identifica ou se sente confortável com esta nossa filosofia, mas é para isso que a concorrência serve, digo eu. Só lamento depois que certos clientes da concorrência optem por pôr palas e ignorar o que se passa à sua volta, talvez por receio de concluirem rapidamente que afinal há coisas bem mais interessantes e abrangentes. 



Quais os conselhos que darias a outros grupos que ambicionem organizar os seus próprios festivais?
Planeamento atempado, muito atempado, é fundamental. Depois, sejam profissionais ou ajam como profissionais, mesmo que não o sejam. Dêem atenção à imagem, ao design, à sinalética, à forma de comunicação no geral. Tudo isso é fundamental para gerar a identidade dum evento, caso contrário não passarão de mais uma cópia (má) de outros que já existam. E sejam ambiciosos na programação, mas com os pés bem assentes da terra. Não há nada pior que uma programação com pés de barro, ou seja, um evento que quer enfiar a carne toda no assador, mas que não tem a estrutura ou a capacidade organizativa para sustentar o excesso de ambição ou de actividades.


Quais os teus planos para o futuro do Anicomics? Como o gostarias de ver daqui a uns anos?
Eu sou ambicioso, mas jamais irrealista. Na minha cabeça, não tenho quaisquer dúvidas que poderia tornar o AniComics no maior e melhor festival de BD e afins do país. Acho que já demonstrei que consigo organizar e liderar uma equipa e fazer muita coisa bem feita com um orçamento mínimo, sobretudo quando comparado, por exemplo, com o Amadora BD. Mas a questão fulcral é esta: o AniComics é um festival exclusivamente financiado pela Kingpin Books, pelo que qualquer crescimento significativo só poderá ocorrer com apoios ou parcerias que, na actual conjuntura, parecem pouco prováveis. Assim, resta-me continuar a ser ambicioso, a exigir-me cada vez mais e melhor.
No meu horizonte imediato, quero expandir o número de exposições de originais durante o AniComics, quer este permaneça ou não na Orlando Ribeiro, e aqui o exemplo do Festival de Beja é uma enorme inspiração. Aspiro igualmente a que o AniComics se torne um palco privilegiado de lançamentos editoriais e que se torne, nessa vertente, numa referência semelhante ao AmadoraBD. Como não sou de fazer repetidamente as mesmas coisas, espero, já em 2013, iniciar um tipo de publicação até agora inédita em Portugal; algo com ambição, com glamour, com design, em suma, mesmo à imagem do AniComics. E tenho na cabeça o espectáculo que será a fusão perfeita dos dois mundos e a plena justificação da nome do evento. Deixo-vos com esta provocação.

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