Um ninho de entrevistas dedicado à actualidade da ilustração e banda desenhada nacionais.
Uma bicada nos mais desatentos pelo que por cá se faz.
Um bater de asas para divulgar os nossos projectos e autores.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Entrevista com Pedro Brito sobre o seu mais recente projecto: o webcomic MARGEM SUL



Principalmente desde o virar do milénio, Pedro Brito revelou-se um dos mais talentosos e multifacetados artistas nacionais dedicados à banda desenhada. O seu currículo fala por si: sete títulos de BD publicados com realce para "Panu Cru", "Beraca" e "Tu és a mulher da minha vida, ela a mulher dos meus sonhos" (em colaboração com o ilustrador João Fazenda). Neste último, Pedro Brito trabalhou exclusivamente como argumentista e viu o sucesso da obra reconhecido com o Prémio de Melhor Álbum Português de BD (Festival da Amadora) e Prémio do Público em 2001, e com a publicação recente em França e na Polónia. Boa parte da sua vida e do seu trabalho têm sido também dedicados à animação: foi asistente de realização no filme "Olhos do Farol" de Pedro Serrazina, e realizou seis curtas, destacando "Sem dúvida, amanhã!" (2006) e "Fado do homem crescido" (2001).
Actualmente, colabora com várias editoras e publicações, tendo ilustrado o livro "A Casa Sincronizada" de Inês Pupo e Gonçalo Pratas, vencedor do Prémio SPA/RTP 2012 na categoria de Melhor Livro infanto-juvenil.

O seu mais recente projecto é um webcomic chamado MARGEM SUL
A entrevista que se segue aborda esse novo desafio assim como outras facetas da carreira do autor...


A que se deveu o teu interesse pela banda desenhada? O que te levou a desenhar histórias em sequência?

Teremos de cair no típico tópico de que, quando era pequenito, tinha uma imaginação fertil e uma necessidade de partilhar as minhas ideias, mas nunca me passou pela cabeça fazê-lo em banda desenhada. Eu comecei a desenhar de uma forma consciente muito tarde, mas sem ter interesse em fazer BD. Desenhava umas coisas sem orientação ou sentido, sem um propósito. Tinha jeitinho…

Era um leitor de banda desenhada pontual, com vontande de contar as estórias que escrevia. Só por volta dos 16, altura que tomei consciência de existirem autores de BD em Portugal, é que pensei: espera lá! Porque não tentar também? É barato, só preciso de papel e canetas, respeitar algumas fórmulas e regras, e produzir. Foi quando comecei a fazer banda desenhada, comecei a sério. Com empenho.





Quais as principais diferenças entre o Pedro quando começou a fazer BD e o Pedro actual? Digo em relação às expectativas, sonhos, certezas, dúvidas…

A ignorância e a ingenuidade são uma benção. Quando comecei a fazer BD, por volta de 92, tinha imensos sonhos e expectativas, mas pouco depois comecei a cair na realidade… A falta de experiência e a falta de interesse editoral foram grandes desmotivadores. O suporte foi talvez começar a conhecer autores da minha idade já com alguma tarimba que me foram direccionado e ajudando, partilhando ideias, técnicas, soluções gráficas e narrativas… O que fez com que eu não desistisse e me esforçasse para melhorar.

A existência de fanzines e de tertúlias de banda desenhada (como a tertúlia do shock, promovida pelo Estrompa) foram um excelente veículo de aprendizagem. O fanzine “Mesinha de Cabeceira” que criei com o Marcos Farrajota também foi um óptimo tubo de ensaio para que, aos poucos, fosse ganhando experiência e confiança nas minhas capacidades, com bantante determinação e afinco. Como nunca achei que fosse um grande desenhador, saía-me tudo com demasiado esforço, a ferros. E ainda sai.




De todos os passos que deste até hoje como autor de banda desenhada, quais aqueles de que mais te orgulhas?

Ter aceite o meu traço. Quando isso aconteceu tudo ficou mais fácil na minha cabeça e as coisas começaram a sair melhor, mais sentidas, mais verdadeiras. E isso denotou-se com o crescente interesse no meu trabalho.
A nível editorial, verificou-se sobretudo com o relativo sucesso de "Tu és a mulher da minha vida, ela a mulher dos meus sonhos”, tendo-se tornado uma BD de referência em Portugal e obtido reconhecimento além fronteiras (editado em três línguas).


Normalmente escreves os teus próprios argumentos e já experimentaste estar nos vários quadrantes: desenhador, desenhador e argumentista ou só argumentista. Em qual dos papéis te sentes mais confortável?

Gosto particularmente de colaborações. Aprendemos sempre quando trabalhamos com alguém. Diferentes maneiras de pensar, diferentes abordagens narrativas e gráficas... Como gosto bastante de contar estórias, se calhar sinto-me mais confortável no papel de argumentista.




Tens agora um novo projecto de webcomics. Fala-nos um pouco dele.

O “Margem Sul” é uma ideia antiga, talvez já com 16 anos. Sempre quis contar um estória que se passasse na minha terra natal: o Barreiro. Nunca avancei porque nunca me senti confortável com o conjunto narrativo. Um pouco imaturo, sem algo realmente importante ou forte para contar. Tinha a ideia na cabeça e de vez em quando tentava desenvolver, resolver, mas só quando comecei a fazer a planificação em papel é que as ideias começaram a ficar claras. E de repente já tinha imensas estórias e personagens e tive de me conter e concentrar-me só num: o Júlio, Sheriff para os amigos. Se tudo correr bem, “Margem Sul” vai ser uma triologia. Três visões diferentes, três personagens diferentes, na mesma cidade.




O que te levou a criar esta história? Quais foram as tuas fontes de inspiração e onde pensas chegar com ela e com estas personagens?

A principal fonte de inspiração foi a minha adolescência, os meus amigos e, acima de tudo, o Barreiro, que tem um papel importante na narrativa. Não querendo cair no comum de que a cidade também é ela uma personagem, mas de facto é. Queria que esta estória tivesse um suporte, um chão, uma verossimilhança. Usando o Barreiro como fundo, consigo criar uma realidade social que tanto pretendo contar.




Gostarias que houvessem mais projectos do género em Portugal? Achas que pode ser uma boa alternativa às dificuldades de edição no nosso país?

Acho que há projectos de webcomic em Portugal, conheço alguns, mas não sei qual é a regularidade e destino se o há. Eu comecei nos fanzines, vejo o webcomic como uma variante disso mesmo. A unica diferença é que não há objecto, não é palpável. Decidi avançar para o este formato porque não estava interessado em fazer 200 páginas de banda desenhada e só depois encontrar uma editora e tentar a publicação. E quem é que em Portugal edita 200 páginas a cores? Assim, decidi que o melhor a fazer era tentar criar regularmente e a um ritmo porreiro: duas páginas por semana, editar no blog e assim divulgar o meu trabalho de uma forma regular. Desta forma, posso receber algum feedback por parte das pessoas interessadas e consigo também escrever de uma forma mais livre e sem limitações editorias, sejam elas de teor temático ou técnico.


Enquanto leitor e consumidor de BD nacional o que gostarias que houvesse mais e, sobretudo, que se fizesse mais?

Mais edições de autores portugueses, um maior apoio e mais interesse por parte, não só das editoras nacionais, mas também dos periódicos e das publicações generalistas. Porque não haver uma revista semanal de teor satírico e humorista como há em França ou Espanha? Porque não voltar a haver revistas como a “TinTin” ou a “Mundo de Aventuras”, que existiam nos anos 80? Não há mercado? Não há interesse? Ou não se sabe como cativar o público? Dará muito trabalho e dores de cabeça tentar criar um público de raiz?

Em Portugal, temos imenso talento, grandes criadores de BD de várias gerações que mereciam ter uma maior visibilidade e divulgação. Gostava também de ver um e melhor critério editorial por parte das editoras. Há demasiadas publicações ditas comerciais que não vendem. Se calhar a aposta devia de ser outra. Se calhar deviam editar obras com maior qualidade, mais adultas, e vendê-las como obras incontornáveis. Algumas editoras têm feito isso ao publicarem o “Persépolis” da Marjane Satrapi ou o “Blankets” do Craig Thompson. Porque não uma reedição do “Maus” do Art Spiegelman? Porque não o “Epileptic” do David B? Edições de qualidade, tanto a nivel da obra em si como do objecto, são uma aposta a considerar.

Hoje em dia tudo é de fácil consumo e fica rapidamente esquecido com o fantasma dos donwloads ilegais. Acho que a aposta num objecto com durabilidade é a mais certeira. Isto porque acredito que as pessoas que realmente apreciam arte, seja ela qual for, gostam e preferem ter um objecto bonito e agradável de manusear do que pasquins, livros com má qualidade a nivel de impressão e encadernação e PDF’s no computador. Se não há qualidade no objecto, ninguém dá valor.


Para saber mais acerca do trabalho do autor, visite os seguintes links:

http://tomalabonecos.blogspot.pt/

http://flavors.me/pedro_brito

http://www.behance.net/pedrobrito

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

2ªs Conferências de BD - Entrevista com Pedro Vieira Moura


Se o cartaz é da autoria do ilustrador João Maio Pinto, a iniciativa de promover umas conferências em Portugal totalmente dedicadas à banda desenhada é, pela segunda vez já, do crítico e pedagogo de BD Pedro Moura.

Para quem ainda não conhece, em que consistem exactamente as Conferências de BD?

Estas conferências são um encontro de natureza académica, no qual vários investigadores, que têm a banda desenhada ou territórios que lhe são próximos (o cartoon, a ilustração, etc.) como seu objecto de estudo, apresentam e discutem trabalhos de investigação, reflexões ou até somente ideias a explorar. Esse espaço de diálogo permite, ou assim esperamos, novos desenvolvimentos e novos desafios, multiplicando esse saber e incentivando outros a dar-lhe continuidade.
Existem muitas disciplinas que podem ser empregues, deste os estudos literários à história da arte, mas também tivemos pessoas com formação em antropologia, estudos feministas, semiótica, jornalismo, arquitectura, etc. As CBDPT também contam com a participação de autores que tem uma considerável capacidade de reflexão crítica sobre esta área ou que têm uma visão particularmente interessante a partilhar com este público especializado.

Elas estão abertas a todas as pessoas, sobretudo enquanto público, mas há uma insistência em termos apresentações capazes de uma qualquer visão crítica, informada disciplinarmente, com conhecimento da história e as especificidades mediáticas, artísticas e expressivas da banda desenhada. Esta área já conta com uma bibliografia especializada com mais de vinte anos, nalguns casos com um grande rigor intelectual, portanto as Conferências também servem de divulgação e re-distribuição desse pensamento, precisamente para multiplicar esses gestos. Já não faz sentido nenhum fazer abordagens superficiais, de listas ou meras impressões, mas antes tecer discursos com alguma complexidade, capazes de ombrear com o tipo de conversas que ocorrem noutras áreas artísticas, digamos, com mais "prestígio intelectual", como o cinema, as artes visuais, etc. A banda desenhada é um território extremamente vasto e produtivo, mas penso que em Portugal ainda está presa sobretudo a visões de fãs, as mais das vezes (mas nem sempre) pouco informados sobre o que se passa na área.

Como ocorre neste tipo de acções, é feito um "call for papers", ou seja, um convite a quem estiver interessado a fazer uma proposta de comunicação, explicando qual o tema que desejam debater, qual a bibliografia que vão usar, que instrumentos empregarão, etc. Depois uma comissão de apreciação lê, aceitando ou rejeitando as propostas, e quase sempre propondo alguns desenvolvimentos, alertando para uma bibliografia específica, etc. Sempre com o intuito de termos as apresentações o mais equilibradas possíveis e contribuir de forma decisiva para a "massa crítica" sobre a banda desenhada em Portugal, ainda algo deficitária, a meu ver (falta de espaço na imprensa generalista, nas universidades, na web, etc.).   

Dado que esta é a segunda edição, quais as principais novidades relativamente ao ano anterior? 

Não temos novidades propriamente ditas e até por várias razões (orçamentais, de comunicação, etc.) será mais reduzida. Não teremos convidados internacionais - o que era desejável, até para confrontar os investigadores portugueses com nomes influentes nesta área de estudos - e temos menos apresentações. Espero que a terceira edição já possa "crescer" em várias direcções. Como é um evento organizado independentemente de instituições e quase a custo zero, mudamos de espaço. O ano passado foi no Instituto França em Portugal, este ano na Biblioteca Municipal Orlando Ribeiro (sempre em Lisboa). Temos, portanto, o apoio logístico dessas instituições.

Já que falamos das primeiras Conferências, na tua opinião, qual foi o balanço? Esperas ainda maior adesão este ano?   

Sinceramente, foi muito positivo. Para começo de conversa, tivemos dezasseis apresentações, todas muito diferentes entre si, mas todas elas com qualidades e perspectivas muito produtivas, penso. O programa pode ser consultado no blog, e está para breve (mas já digo isto há um ano!) o lançamento do site (www.reirubro.org) onde estarão as actas completas.

Além disso, tivemos dois convidados internacionais, absolutamente indispensáveis nesta área de estudos, o David Kunzle, de certa forma o fundador dos Comic Studies e historiador comme il faut da banda desenhada, e Thierry Groensteen, cuja obra, sobretudo marcada pelo pós-estruturalismo e a semiologia, é um ponto de partida fulcral (ainda que, como tudo, aberto a discussões e desenvolvimentos) para o seu estudo.   

Houve ainda oportunidade para momentos de convívio muito descontraídos entre toda esta gente, discussões vivas e o lançamento de várias ideias (a formação de grupos de estudo, etc.) que espero virem a tomar forma num futuro próximo. E houve também algum público, algumas caras conhecidas da nossa praça, mas muitas pessoas novas também, que se integraram nas discussões, na partilha de informação e na vontade de lançar novos desafios mútuos. O cômputo final foi muito estimulante, espero eu para todos os envolvidos.

Quais são os verdadeiros objectivos de umas Conferências de BD em Portugal? Para quem achas que pode ser mais benéfico?

Penso ter respondido já no início, em parte, a esta pergunta. A resposta que desejava dar era "toda a gente que se interessar por banda desenhada". No entanto, estou bastante ciente que muitas vezes há uma atitude generalista anti-intelectual que desconfia sempre do tipo de discursos que são produzidos por este tipo de encontros. Convenhamos, não é preciso saber nada destas coisas para ler banda desenhada, e muito menos para criá-la. Mas se se pretende discutir aspectos em torno da banda desenhada, seja criar um discurso verdadeiramente crítico, e não meramente informativo, divulgador e jornalístico (e todos esses discursos podem ser mais ou menos esvaziados de pensamento como informados de modo original, e tem igualmente o seu papel fulcral na circulação de informação e saber), então tem que se ter não só um ponto de vista mais ou menos constituído como acompanhar o que se anda a discutir, produzir, estudar, etc. E é esse público que a CBDPT pode servir particularmente. Dito isto, penso que é algo que interessará a investigadores dos mass media, da cultura popular, das interacções artísticas, a estudantes, a jornalistas, e até, porque não?, a leitores ditos convencionais (a palavra é horrível, mas enfim; e atenção!, são os leitores as criaturas mais importantes depois dos autores, neste campo).

Quais são as ideias que tens e que ainda não pudeste concretizar? Quais seriam para ti as Conferências de BD ideais?

A resposta óbvia a isto é a que todos esperam: "com mais dinheiro"! Dinheiro não para pagar às pessoas, isso é menos importante (excepto nalguns casos particulares - e devo dizer que há pessoas que têm trabalhado incansavelmente ou contribuído para estas conferências e de borla: Cláudia Dias, Rafael Martins, Ricardo Cabral, João Maio Pinto...), e penso que concordarão todos aqueles envolvidos, mas que nos permitisse várias coisas.   

Para mim é fundamental que tenhamos a oportunidade de termos convidados. Apenas ao ouvirmos, falarmos e discutirmos directamente com pessoas que vêm de locais onde as condições de estudo desta área são melhores dos que a que existem em Portugal (praticamente nenhumas) é que aprenderemos melhor sobre o que há a fazer, como fazê-lo, pensarmos nas especificidades do nosso panorama, e por aí fora. Mas convidados significa passagens aéreas, estadias, alimentação...

Por outro lado, gostava eventualmente de poder também ter uma dimensão de divulgação de documentários ou séries (tenho uma mala cheia dessas coisas) que poderiam ser úteis ao público. Ou até de masterclass/exposições com um autor.

A associação ao Laboratório de Estudos de Banda Desenhada - o nome informal que dou ao meu "escritório" e à rede de apoio aos estudos que ele pode providenciar, também pretende apontar a um possível crescimento. Faria todo o sentido aliar os seus objectivos às várias instituições que existem dedicadas à banda desenhada em Portugal (Bedeteca de Lisboa, CNBDI, Bedeteca de Beja), mas não podemos ficar à espera ad aeternum. Espero não haver aqui nenhum mal-entendido, uma vez que todas estas instituições apoiaram as CBDPT no que puderam. O que quero dizer é que esta dimensão da banda desenhada raras vezes foi coberta, ou de forma pontual e logo descontinuada, e espero que as CBDPT possam contribuir nesse sentido.   

Queres deixar alguma mensagem ao público potencialmente interessado em atender ao evento?

Venham. E nem precisam de fazer cosplay.

As 2ªs Conferências de BD, decorrerão no dia 29 de Setembro, no auditório da Biblioteca Municipal Orlando Ribeiro em Telheiras.

Para saber mais, consultar o blog oficial em http://cbdpt.blogspot.pt/

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Entrevista com JB Martins, argumentista de BD

Por detrás do Cineblog (um blog de cinema que pode ser acompanhado aqui) e da série de curtas de BD sobre cinema "A Garagem de Kubrick", realizada em parceria com a ilustradora Carla Rodrigues, está um divertido e enigmático argumentista que responde pelo pseudónimo de JB Martins. Para quem o quiser conhecer melhor, aqui fica uma breve entrevista...


Para aqueles que duvidam da tua verdadeira existência… Quem é afinal JB Martins?
Quando a Carla (Carla Rodrigues) me contou que existem pessoas que duvidam da minha existência fiquei bastante honrado. No fundo isso coloca-me no patamar de um Pé Grande ou de um Monstro de Loch Ness, o que não é para qualquer um. Mas infelizmente, eu existo mesmo. Sou uma criatura com 26 anos de Coimbra. Tenho uma licenciatura e um mestrado em Jornalismo e trabalho na Universidade de Coimbra. Tirando o meu nome não há nada de mítico em mim (JB Martins não é o meu nome verdadeiro. Esse vou continuar a deixar em segredo... assim tem mais piada).

Qual das tuas paixões tem mais força: a banda desenhada ou o cinema?
Curiosamente essas duas paixões surgiram mais ou menos na mesma altura. Os meus heróis de infância eram o Batman (iniciei-me na BD de super-heróis com o story arc Knightfall - claro que na altura nem sabia o que era um story arc) e o James Bond. Cheguei a desenhar algumas bds e tudo (basicamente copiava os desenhos de outras bds e criava estórias muito rudimentares). Mas entretanto, e talvez por ser mais acessível, o cinema foi ganhando protagonismo. Nos últimos anos voltei a redescobrir o meu interesse pela banda-desenhada e, nos dias que correm, escolher entre os dois é difícil. No entanto, e uma vez que o meu blog se chama Cineblog (e não Bdblog ou algo do género), acho que tenho de dar a vitória ao cinema. Mas é por pouco. Aquilo que gosto mesmo é de boas estórias e tanto a BD como o Cinema são plataformas de excelência para contar boas estórias.


A série de curtas à qual tens dedicado quase toda a tua actividade como argumentista de BD, “A Garagem de Kubrick”, surgiu no âmbito do teu Cineblog. Como surgiu este projecto?
O Cineblog surgiu em 2003 depois de ter visto um programa televisivo onde se falava de blogs, essa plataforma que prometia revolucionar a Internet. Como os sites que mais visitava na altura eram de cinema, a temática surgiu naturalmente. Claro que se soubesse que ia durar tanto tempo tinha arranjado um nome mais original.


E a garagem? Como nasceu?
A Garagem nasceu porque o bichinho da banda-desenhada nunca me abandonou totalmente. Queria contar histórias novas, criar personagens ou brincar com personagens que já existiam, um pouco como fazia em criança. Infelizmente os meus dotes de desenhador são pouco mais do que nulos. Foi aí que descobri que uma das visitantes do Cineblog tinha um dom especial para os "rabiscos" e resolvi contactá-la por mail com este projeto. Foi assim que nasceu a Garagem.


Já conhecias a Carla Rodrigues antes de escrever para ela? Como avalias a parceria até hoje?
A Carla era uma visitante assídua do meu blogue. Comentava regularmente o meus posts miseráveis. Também descobri o blogue dela onde falava um pouco de cinema e publicava alguns dos seus desenhos. Só a conhecia por isso. A parceria não poderia ser melhor. A Garagem nunca teria acontecido sem os desenhos da Carla. O seu traço tem uma personalidade que se enquadra na perfeição naquilo que tinha pensado para a Garagem. E claro, para além de ser muito talentosa, é uma excelente pessoa.


O argumento de banda desenhada é algo que queres aprofundar no futuro? Tens ideias para projectos maiores e mais ambiciosos?
Sem dúvida que gostaria de aprofundar essa faceta. Há um sem-fim de possibilidades na banda-desenhada. Para além da Garagem já tenho escrito alguns contos de bd para a revista Zona que me deram muito gosto a fazer (mais uma vez em parceria com a Carla). E sim, tenho alguns projectos em mente, mais longos e mais ambiciosos. Muitos não vão passar disso mesmo, outros quem sabe. Assim de repente posso aqui dizer que já tenho escrito umas páginas de uma bd protagonizada por um grupo de forcados amadores, essa instituição portuguesa tantas vezes ignorada pelo panorama literário nacional.


Voltando à “Garagem de Kubrick”, recentemente fez 3 anos. O que podemos esperar da série para o futuro? O livro está nos vossos horizontes?
Para o futuro vamos tentar fazer mais e melhor. Penso na Garagem como aquele armazém que aparece no final do primeiro Indiana Jones, a Área 51. Cada episódio da Garagem é uma daquelas caixas de madeira. Ainda há muitas para a abrir. O livro estará sempre nos nossos horizontes. Até porque o interesse demonstrado pelos leitores numa futura compilação tem sido imenso e não podemos desiludir aqueles que nos apoiam.


Cinema e banda desenhada. O que te apraz dizer sobre a relação entre os dois e dos exemplos recentes de adaptações?
A banda desenhada no cinema está provavelmente a passar por uma das suas melhores fases. Os super-heróis, como o Batman ou os Avengers da Marvel, nunca tiveram tão bom aspeto e movem multidões.  Esse sucesso dos super-heróis arrasta outros projectos, não tão populares, mas que também começam a ganhar força no cinema. Que a relação continue por muitos anos e que tenham muitos meninos.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Entrevista com o autor de BD Marco Mendes acerca do seu novo álbum "Diário Rasgado"



Para quem ainda não te conhece, fala-nos do teu percurso até te tornares ilustrador, docente e banda desenhista.

Estudei Design Gráfico, nas Belas artes do Porto, mas nunca exerci, propriamente. Desde cedo me dediquei ao ensino e a banda desenhada, desde os tempos de estudante, foi sempre uma paixão, mais do que uma tentativa de fazer carreira, ou algo desse tipo. Comecei por publicar desenhos e bds em fanzines como toda a gente, e mais tarde formei A Mula, com o Miguel Carneiro, antes de me concentrar no meu trabalho “a solo”, recentemente editado em livro.





Este “Diário Rasgado” também existe online sob a forma de webcomic. Porquê o blogue antes do livro?

E porque não? O meu blog e ultimamente o facebook são os meios através dos quais consigo chegar ao maior número de leitores. Cada publicação minha online ultrapassa num dia facilmente as 100 visualizações, mais do que o número de livros que consigo vender num mês, ou o número de visitantes de muitas exposições que fiz. Contudo no blog ou no facebook não se tem a possibilidade, como no livro, de apreciar em detalhe as imagens, ou ler as histórias na sequência certa. Uma coisa não exclui a outra.






Achas que a internet é uma plataforma importante para a BD actual? Para ti, quais as suas vantagens e desvantagens?

A internet é uma plataforma essencial num contexto como o português, onde não há um mercado para a bd, nem instituições dedicadas à divulgação dos nossos autores. É através da web que pelo menos uma minoria interessada de leitores toma contacto com a obra de autores como eu, sem uma grande editora ou máquina promocional por trás.




E os fanzines? Fala-nos da tua experiência nesse universo.

Os fanzines são um espaço de experimentação e liberdade para qualquer autor. O primeiro que fiz, devia ter uns 8 ou 9 anos, serviu para angariar dinheiro para as actividades do meu grupo escutista. Desenhos, bds e passatempos, em folhas A4 fotocopiadas, dobradas e agrafadas, distribuídas e vendidas por nós próprios. Essa sensação de autosuficiência, de poder fazer tudo sem a intervenção de terceiros, a diversão e a vontade de comunicar coisas muito concretas, é o que hoje ainda procuro, nos meus projectos editoriais.


 

“Diário Rasgado” tem uma forte componente autobiográfica mas também ficcional. Qual dessas vertentes se verifica mais?

Os personagens são reais, as histórias ficcionadas. Cada personagem desempenha um papel próximo da sua vida real, mas de resto é tudo invenção. Os textos, as situações, etc. Com excepção para as histórias familiares, do meu avô, por exemplo, que resultaram de entrevistas e pretendem ser o mais documentais possível.



Esta tua obra é quase exclusivamente realizada a preto e branco, com apenas algumas pranchas a cores. É por uma questão de economia de tempo ou preferes mesmo o monocromatismo?

Cada caso é um caso.




Ao longo do livro, também mostras um interessante contraste entre o humor e o drama. Qual dos géneros te interessa mais desenvolver?

São muito próximos esses dois. Não vejo maneira de os separar.




Podes deixar-nos algumas referências de autores que admires e que foram / são referências para ti?

Todos os grandes autores de bd, nacionais e internacionais. Sendo que para mim há uma cisão muito clara entre aquilo que é banda desenhada de autor, e apenas entretenimento. Não leio bd de super-heróis, nem a bd japonesa mais comercial, porque não me interessa. Portugueses: Raphael Bordallo Pinheiro, Carlos Botelho, Cottineli Telmo, Sérgio Luís, Stuart de Carvalhais, Sérgio Luís, Isabel Lobinho, Carlos Zíngaro, Relvas, Filipe Abranches, Ana Cortesão, João Fontesanta, José Carlos Fernandes, Janus, etc.
Estrangeiros: Alberto Breccia, José Munoz, Will Eisner, Harvey Kurtzman, Yoshihiro Tatsumi, Nicolai Maslov, Martí, Ramon Boldu, Carlos Giménez, Nazario, Justin Green, Robert Crumb, Jerry Moriarty, Art Spiegelman, Joe Sacco, Raymond Briggs, Daniel Clowes, Joe Matt, Chester Brown, Peter Kuper, Gilbert Hernandez, Charles Burns, Eddie Campbell, etc.




E, além da tua, que obras nos aconselharias a ler?

Sobrevida, de Carlos Pinheiro e Nuno Sousa, lançado pela imprensa Canalha, este mês. Na galeria mundo Fantasma no Porto, onde poderão ver os originais expostos até meados de Julho.




Para terminar, quais os teus planos para o futuro? O que podemos esperar da tua parte para os próximos meses?

Este ano queria editar um livro de desenhos a lápis, retratos, naturezas mortas e paisagens, mas isso depende de como correrem as vendas do “Diário Rasgado”. Fora isso vou continuar o meu trabalho em banda desenhada, no registo habitual, embora planeie também algumas histórias um pouco mais longas.



O álbum "Diário Rasgado", editado pela Mundo Fantasma, já se encontra à venda. Entretanto, pode acompanhar o percurso do autor aqui.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Mário Freitas, autor e editor de BD, faz um balanço do festival ANICOMICS LISBOA 2012



Como surgiu a ideia de criar o Anicomics? Quais os seus objectivos e a que público se dirige?
Enquanto alguém que participa activamente em eventos de BD há quase 13 anos, fui acumulando experiência e ideias muito concretas sobre a melhor forma de funcionamento de um festival. Não havia até então em Portugal um evento que congregasse de facto a vertente da BD ocidental com a da japonesa, integrando  comics, manga e cosplay; e esse foi provavelmente o ponto de partida do AniComics: fazer um festival transversal que abrangesse um leque diferenciado de público. Depois, sentia também que faltava design, faltava glamour, faltava modernidade aos festivais de BD e afins em Portugal. E tenho vindo progressivamente a adicionar esses pozinhos de beleza ao AniComics, porque a BD e os seus derivados são coisas belas, coisas em constante renovação, que não devem, não podem ficar colados a visuais datados e bafientos, e a ideias pré-concebidas do que um festival pode ou não abranger.

 
Este ano, na fase pré-festival, quais foram as diferenças mais significativas em relação aos exemplos anteriores? Sentiste que havia uma maior expectativa, fizeste as coisas de maneira diferente, tiveste mais apoios...?
Este ano tracei uma meta simples, logo desde o início: fazer o maior e melhor AniComics de sempre. Nesse sentido, todas as expectativas foram sendo geradas a partir daí. Não tenho dúvidas que atingi claramente essa meta, mas trabalhei muito para conseguir isso. Para esta 3ª edição, começou-se a tratar de tudo ainda mais cedo que o habitual e, só para terem uma ideia, os convites para o show de cosplay foram feitos logo após a edição do ano passado, com um ano de antecedência, portanto. De resto, dada a extensão das actividades no programa e a maior ambição geral deste, tive naturalmente de me rodear de mais gente para que tudo ficasse preparado a tempo.


Fala-nos um pouco da tua equipa, o grupo de pessoas que tornaram possível o festival. Como é que estão organizados?
Inicialmente, quase tudo parte da minha cabeça. As ideias para os espectáculos e actividades, a divisão dos espaços, os horários da programação, tudo. Sou bastante centralizador nesse aspecto, porque gosto de ter uma visão global e absoluta do que será o evento. Só depois dessa fase começo a trabalhar com outras pessoas no sentido de desenvolver as ideias ou ouvir alternativas melhores e, às vezes, totalmente inesperadas, como aconteceu com o Show Burlesco, cuja ideia partiu da Marisa Cruz, depois de a ter convidado para co-apresentar o evento comigo. Ela é um verdadeiro dínamo, capaz de pôr dezenas de pessoas a mexer e a fazer o que ela manda. Uma espécie de Mário Freitas, mas muito mais bonita e autoritária. Aliás, isto é curioso, porque o que acabei de dizer da Marisa se encaixa como uma luva na Fátima Pereira, a coordenadora de toda a equipa de voluntários que, por acaso, também é casada comigo. Acho que pelos vistos, no evento, tal como na vida, gosto de me rodear de mulheres fortes e com personalidade. Não posso deixar de mencionar, claro, a diva do AniComics, a Leonor Grácias, que esteve praticamente omnipresente ao longo do fim-de-semana, participando no show de cosplay, nos desfiles de moda, no show burlesco, e ainda deu um workshop e foi presidente do júri no concurso de cosplay. Ah, e faltou referir que foi uma espécie de relações públicas de luxo do evento e que ainda ajudou ao treino dos modelos para os desfiles.
Deixando de falar de pessoas bonitas e passando para aquelas que são apenas dedicadas e muito competentes no que fazem, tenho de destacar todo o exaustivo trabalho de som e luzes que foi realizado pelo Rogério Folgado, pelo Rodrigo Reis e pelo Rui Brandão. É certamente o trabalho mais exigente e menos visível no evento, sem o qual o AniComics não teria corrido tão bem. Destaco ainda o trabalho do Pedro Bragança na nova Gaming Zone e prometo-lhe, para o ano, melhores condições e melhor planeamento nessa área. A gaming zone, sendo uma estreia, é daquelas que ainda tem muito para melhorar e aperfeiçoar. Uma inovação que correu lindamente, sem quaisquer sobressaltos, foi a introdução do sistema de vouchers para os autógrafos com os autores convidados; o grande mérito aí foi do Hugo Silva, que soube organizar as filas de forma ordeira e impecável e evitar certos abusos e confusões ocorridos nos anos anteriores.
Na parte visual e promocional, todo o destaque vai para o Carlos Pedro, em quem confiei e com quem tratei de perto para a concepção do logo e do cartaz do AniComics. Eu já trabalho com o Carlos desde 2005, pelo que ele sabe bem o que o espera: muita troca de ideias, muita cabeçada na parede, puxões de orelhas até, mas no final o resultado será, certamente, o melhor possível entre várias soluções ou alternativas pensadas. Como é hábito, não fomos para a solução mais fácil ou óbvia e apostámos um bocadinho no risco, mas creio que a recepção dificilmente poderia ter sido melhor. Depois, foi adaptar esse visual do cartaz às necessidades específicas de um website, coisa que a Daniela Oliveira soube fazer de forma irrepreensível, aturando os meus constantes acrescentos e rectificações à programação.

Porquê a Biblioteca Orlando Ribeiro? Como começou esta parceria?
A ideia de realizar um evento na Orlando Ribeiro (BMOR) surgiu durante uma conversa com o Adalberto Barreto, que trabalhava então para o Núcleo do Livro e da Bibilioteca da Câmara de Lisboa. Eu já conhecia o espaço dum simpósio em que tinha participado, pelo que comecei logo a magicar o que seria possível fazer ali, contando desde o início com todo o apoio e entusiasmo dos responsáveis da bilbioteca (entusiamo que só tem crescido a cada edição, dado que nunca a BMOR levou tanta gente como nos dias de realização do AniComics). A Orlando Ribeiro tem excelentes valências, nomeadamente tudo o que está relacionado com o auditório; tem um óptimo palco, tem um sistema de luz e som bastante decente, tem camarins grandes, e tudo isso é fundamental quando se quer fazer um evento com uma forte componente de espectáculo e que não se resuma a ter uma dúzia de autores sentados durante horas a dar autógrafos; isso é importante, mas, se for tudo o que um festival tem para dar, então é manifestamente escasso, além de muito aborrecido.
A BMOR pode não ser um espaço muito grande - tendo em conta sobretudo a dimensão que o AniComics rapidamente atingiu - mas é muito versátil. A existência do auditório, do pátio exterior e do edifício da biblioteca propriamente dita, permite uma boa mescla de actividades sem ocorrerem atropelos ou sobreposições indesejáveis. Aquilo que conseguimos este ano, ficar com todo o espaço da BMOR ao serviço do evento, foi fulcral para o crescimento e para o sucesso da presente edição. Mesmo com um acréscimo brutal no número de visitantes, circulava-se muito mais à vontade por quase todo o lado, sem as enchentes ou constrangimentos dos anos anteriores; com uma excepção, e é essa a minha maior causa de preocupação para o futuro: a lotação do auditório. Entre 140 lugares sentados e outros tantos de pé, o espaço foi manifestamente exíguo para tanta gente que queria assistir a alguns dos espectáculos, em particular o burlesco e o cosplay. É uma situação de resolução complexa, pelo que não me vou alongar mais para já sobre o assunto.


Finalizado o evento, qual é o balanço que fazes do Anicomics? Quais os seus pontos mais positivos e menos positivos?
O balanço só pode ser óptimo, isso parece quase unânime. Mas, mais do que isso, o que me deixa satisfeito é que a aposta na diversificação foi mais do que ganha. Cheguei a ouvir pessoas questionarem o porquê dos desfiles de moda ou do show burlesco e o que tinha isso a ver com banda desenhada. Acho que é este tipo de mentalidade redutora que o AniComics nasceu para combater, vou ser franco. É por tanta gente ignorar a relação óbvia entre a BD, a moda e o design que certas bandas desenhadas ou eventos relacionados parecem parados no tempo, com os mesmos visuais e os mesmos tiques de há décadas. E isto tanto é válido para os autores que as fazem, como para os leitores que levam esses autores a continuarem a fazê-las.
Dito isto, passar de 800 e tal pessoas em 2011 para quase 1600 em 2012 demonstra bem o que o AniComics se começa a tornar e toda a onda de entusiasmo que gera à sua volta. Aliás, corrijam-me se estiver enganado, mas as reacções após o evento não têm paralelo em nenhum evento até aqui, mesmo num de maior envergadura como o Iberanime. Foram milhares de fotos, milhares de comentários nas redes sociais e, o mais espantoso de tudo isto, é que só li ou ouvi umas quatro ou cinco opiniões negativas, duas das quais de pessoas que nem sequer lá tinham estado.
Porém, nem tudo foi perfeito, pelo menos para o grau de exigência que coloco a mim mesmo e aos que comigo colaboram. Logo nos dias a seguir ao evento, elaborei uma lista de cerca de trinta tópicos com detalhes a melhorar ou ideias a implementar na próxima edição. Algumas são simples e fáceis de executar e irão certamente dificultar o surgimento de certos atrasos na programação. Outras há, como a questão do espaço do auditório, que não estica, e que não é possível tornear, mas vamos ver o que se pode fazer com mais uma dose de imaginação. Há ainda outra questão que me anda a causar um formigueiro terrível no céu da boca: sinto um divórcio, no mínimo suspeito, de uma certa faixa da BD nacional, em relação ao AniComics. E isto é tanto mais estranho, quanto o AniComics tem primado pela atenção permanente aos autores nacionais, nomeadamente da nova geração, aqueles tantas vezes esquecidos pelos festivais portugueses mais clássicos, muitas vezes por mera ignorância ou desconhecimento dessas organizações. É como se houvesse pruridos da parte desses autores, desse público, em misturarem-se com a faixa mais numerosa, mais ruidosa do manga e do cosplay. Dá-me sempre a ideia que se sentem mais confortáveis num “festival” vazio e sem a mais pequena ponta de festa, mas, lamento dizer, não contem com o AniComics para isso.


À vista de muitos visitantes, o evento foi considerado um verdadeiro sucesso. Para ti, quais fora as regras de ouro que possibilitaram esta realidade?
Muitos meses de trabalho, muita imaginação e criatividade, a experiência acumulada dos dois anos anteriores, e a capacidade e humildade para ouvir as críticas e sugestões que foram feitas nos anos anteriores, também. Quem me acusa de “arrogância” ou qualquer disparate do género, não me conhece, definitivamente, porque há duas palavras que eu tenho muito facilidade em pronunciar, que são “obrigado” e “desculpa”. E quem consegue congregar tanta gente, e tanta gente diferente, à sua volta, terá certamente de ter características pessoais que vão muito além desse tipo de baixa adjectivação. Entre staff, voluntários, autores, parceiros, modelos, cosplayers e dançarinos, o AniComics contou com o brilho e com o esforço de cerca de 200 pessoas que, na prática, fizeram o evento. É óbvio que tem de haver uma liderança, tem de haver uma visão, tem de haver um projecto, e não me vou pôr com falsas modéstias e negar que o AniComics é um evento à minha imagem. Quem quiser confundir isso com vaidade ou convencimento fique lá com o berlinde; confesso que isso começa a ser para o lado que me deito melhor. Se calhar conviria antes salientar que ter uma visão concreta confere uma coisa que tanta falta faz a criaturas da nossa praça: coerência. Ter coerência impede-nos de zigzaguear entre opiniões, entre locais, entre estratégias imediatistas desesperadas, entre inimigos imaginários criados para desculpabilizar os erros próprios. Mas adiante.
Retomando o tema das colaborações, saber rodear-me das pessoas certas para a execução do evento tem sido fulcral. Em primeira instância, nunca o poderia fazer sem a toda a dedicação e altruismo dos cerca de 40 voluntários que nos ajudaram este ano. Para além disso, ter pessoas-chave capazes de coordenar ou dinamizar áreas específicas como a gaming zone, o burlesco ou o cosplay foi fundamental para o grande evento que fizemos. É claro que de nada serviria todo o planeamento atempado ou a qualidade da programação, se depois não houvesse uma divulgação capaz de levar público ao evento. E aí, a utilização do facebook foi fundamental; custa-me como uma ferramento tão útil e com tantas potencialidades é, na maioria dos casos, usada apenas como veículo de propagação de inutilidades, falsas informações e mitos urbanos. Tenho igualmente de agradecer ao Nuno Amado pela excelente divulgação que foi fazendo no seu blog, nas semanas que antecederam o evento, e pela cobertura que deu durante a sua realização, que deu depois pano para mangas e um interessante debate. O “Leituras de BD” é, aliás, um óptimo pólo de discussão e debate sobre a BD em Portugal e não só, e tem essa grande virtude que é não ter medo de emitir opiniões, mesmo que tais possam não agradar a todos. Confesso que me irritam os blogs ou os sites que até cheiram a água oxigenada, de tão anódinos que são.
Outro dos “segredos” do AniComics é a componente emocional, a familiaridade e proximidade entre quem faz e quem visita o evento. Eu transponho para o festival a filosofia que desde sempre implementei na loja: enquanto outros têm “sócios” que são tratados pelo número, a Kingpin Books tem amigos que são tratados pelo nome. Tenho plena noção que nem todo o tipo de pessoas se identifica ou se sente confortável com esta nossa filosofia, mas é para isso que a concorrência serve, digo eu. Só lamento depois que certos clientes da concorrência optem por pôr palas e ignorar o que se passa à sua volta, talvez por receio de concluirem rapidamente que afinal há coisas bem mais interessantes e abrangentes. 



Quais os conselhos que darias a outros grupos que ambicionem organizar os seus próprios festivais?
Planeamento atempado, muito atempado, é fundamental. Depois, sejam profissionais ou ajam como profissionais, mesmo que não o sejam. Dêem atenção à imagem, ao design, à sinalética, à forma de comunicação no geral. Tudo isso é fundamental para gerar a identidade dum evento, caso contrário não passarão de mais uma cópia (má) de outros que já existam. E sejam ambiciosos na programação, mas com os pés bem assentes da terra. Não há nada pior que uma programação com pés de barro, ou seja, um evento que quer enfiar a carne toda no assador, mas que não tem a estrutura ou a capacidade organizativa para sustentar o excesso de ambição ou de actividades.


Quais os teus planos para o futuro do Anicomics? Como o gostarias de ver daqui a uns anos?
Eu sou ambicioso, mas jamais irrealista. Na minha cabeça, não tenho quaisquer dúvidas que poderia tornar o AniComics no maior e melhor festival de BD e afins do país. Acho que já demonstrei que consigo organizar e liderar uma equipa e fazer muita coisa bem feita com um orçamento mínimo, sobretudo quando comparado, por exemplo, com o Amadora BD. Mas a questão fulcral é esta: o AniComics é um festival exclusivamente financiado pela Kingpin Books, pelo que qualquer crescimento significativo só poderá ocorrer com apoios ou parcerias que, na actual conjuntura, parecem pouco prováveis. Assim, resta-me continuar a ser ambicioso, a exigir-me cada vez mais e melhor.
No meu horizonte imediato, quero expandir o número de exposições de originais durante o AniComics, quer este permaneça ou não na Orlando Ribeiro, e aqui o exemplo do Festival de Beja é uma enorme inspiração. Aspiro igualmente a que o AniComics se torne um palco privilegiado de lançamentos editoriais e que se torne, nessa vertente, numa referência semelhante ao AmadoraBD. Como não sou de fazer repetidamente as mesmas coisas, espero, já em 2013, iniciar um tipo de publicação até agora inédita em Portugal; algo com ambição, com glamour, com design, em suma, mesmo à imagem do AniComics. E tenho na cabeça o espectáculo que será a fusão perfeita dos dois mundos e a plena justificação da nome do evento. Deixo-vos com esta provocação.