Fala-nos
um pouco do teu já longo percurso na banda desenhada portuguesa. De onde veio
essa paixão pela BD?
Comecei a ler banda desenhada por volta dos 8 anos,
quando descobri a colecção do Mundo de Aventuras, que o meu pai guardava no
guarda-fatos – isto em Lourenço Marques (actual Maputo), onde vivi com a
família, dos cinco aos dez anos. Lia o Mandrake, o Fantasma, Cisco Kid, Tarzan,
etc... Depois do regresso a Portugal deixei praticamente de ler BD até aos
16/17 anos. Lia sobretudo o “Sandokan” do Salgari e depois, todo o Eça de
Queiroz, até encontrar coisas no género de “Porque não sou Cristão”, de
Bertrand Russel, “O Macaco Nú”, de Desmond Morris, “Os Doze Césares”, de
Suetonio e por este livro, iniciei o meu percurso de devorador de livros de
História, que dura até hoje. Mas quando apareceu a revista Tintin, em 1968,
comecei a coleccioná-la religiosamente durante uns anos. Daí veio a paixão
sobretudo por Asterix, mas também Lucky Luke, Bernard Prince, etc..., devo
dizer que o Tintin, de Hergé, nunca me
interessou muito. E curiosamente detestei o Corto Maltese quando apareceu na
Tintin... Digo curiosamente porque mais tarde, haveria de me tornar um quase “especialista”
em Corto Maltese, sobretudo depois de o ler na (A Suivre) e quando legendei
três álbuns das Edições 70, onde trabalhei entre 1985 e 1988.
Nesse tempo, entre 1968 e, digamos 1979, o meu
interesse era a História, a poesia (que agora detesto) e a pintura. Pintei
frenéticamente, coisas que em grande parte se perderam, oferecidas, deitadas
fora, etc... e ainda espero voltar à pintura, um dia. Pelo caminho que a coisa
leva, talvez só quando ficar gagá, não sei...
Mas continuemos com a BD. O meu verdadeiro
interesse pela banda desenhada só começou a sério quando descobri, por volta de
1979, alguns exemplares da Metal Hurlant e da (A Suivre). Aí sim, a coisa nunca
mais parou. Comecei a desenhar algumas histórias que nunca terminei. Participei
numa exposição (com quatro pranchas de uma história sobre Bartolomeu Dias) na
Livraria Barata, em 1986, com os monstros sagrados da BD portuguesa, o José
Ruy, o Garcêz, Augusto Trigo, Victor Mesquita, Eugénio Silva, Baptista
Mendes... e eu, ali no meio, sem saber muito bem o que estava lá a fazer.
Foi
também quando conheci Geraldes Lino, diga-se.
Depois em 1990 (ou 91, já não me lembro bem),
resolvi concorrer ao concurso Navegadores Portugueses, do Centro Nacional de
Cultura, com 10 pranchas (9 em esboço e 1 finalizada) de “Ilhas no Mar
Occeano”. Mas por não ter apresentado as pranchas finalizadas, recebi apenas uma
Menção Honrosa. Uns meses depois fui contactado pela Asa para realizar uma banda
desenhada, mas não sobre Descobrimentos.
Pediam-me a adaptação de “Os Maias” do
Eça de Queiroz. Ia-me dando um treco (como dizem os brasileiros), porque “Os
Maias” é um livro com 400 e tal páginas... Mas aceitei. Levei talvez um ano a
fazer a adaptação do texto e comecei a desenhar. Quando já tinha entregue 14
pranchas – 6 delas com a cor – a administração da Asa descobriu que tinha os
armazéns cheios de livros de BD portuguesa que não se vendiam e comunicou-me
que cancelava todos os projectos de banda desenhada em curso. Mas pagaram-me as
pranchas entregues.
Um ano depois fui de novo contactado pela Asa, que,
diziam, me queria compensar por terem desistido do projecto de “Os Maias”.
A
proposta agora, era a actualização do álbum “História da Formula 1”, com um
caderno especial sobre Ayrton Sena que tinha morrido nesse ano (1994) em plena
corrida. Outro treco! Nunca na vida tinha desenhado carros de que espécie
fosse. Mas aceitei – ia a todas! Recolhi quilos de material – incluindo os
Anuários de Formula 1 e por via disso, o editor destes Anuários, encomendou-me
uma ilustração do Ayrton Senna para um livro que ia editar sobre o piloto
brasileiro. Passei ao desenho, montes de esboços e quatro pranchas a preto e a
primeira a cores – só entreguei as pranchas a preto, que foram pagas, diga-se –
quando a Asa voltou a cancelar o projecto, anunciando que renunciava à
publicação de BD. Só voltaria a editar BD já em 2002, com a Maria José Pereira
aos comandos. A prancha a cores foi-me comprada, mais tarde, por Geraldes Lino
(ou antes, quase o obriguei a comprar-ma porque estava sem cheta).
Estes trabalhos frustrados levaram-me a parar quase
completamente de desenhar. Comecei então a escrever uma história “Sob o Signo
do Pelicano” (muito influenciado pelos títulos das histórias de Hugo Pratt,
como se percebe), onde – ambientando a acção na guerra Luso-Castelhana, que
terminou com a batalha de Toro, em 1476 – iniciava uma série centrada nos
espiões do Príncipe D.João, futuro rei D.João II. Quem conhece um pouco de
História, sabe que o Pelicano era o signo de D.João II. Cheguei a iniciar o
desenho de uma das histórias para esta série, “Pelo Meridiano de Tordesilhas”, de
que só existe mesmo a primeira prancha...
Conheci então Victor Borges, que tinha um traço
humorístico fabuloso e, continuando com espiões, iniciei outra história para
ele desenhar: “As Aventuras de Paio Peres”, espião de Afonso Anriques, Rey dos
Portucalenses...
Ao
longo dos anos fundaste uma pequena editora, a Pedranocharco, e lançaste muitos
livros de autores nacionais. O que te motivou a entrar na publicação de BD em
português?
Esta pergunta encadeia com o final da resposta
anterior, porque a Pedranocharco nasceu precisamente por causa de “As Aventuras
Paio Peres”. Mas antes disso...
No início de 1992 fui convidado pela direcção do
jornal quinzenal “Outra Banda” do Seixal, para escrever uma página sobre banda
desenhada, a que chamei “Outra Banda desenhada”. Nessa página, as pranchas de “As
Aventuras de Paio Peres – O Espião” começaram a ser pré-publicadas. Mas ao fim
de oito meses, por questões que não tiveram nada a ver com a BD, desentendi-me
com o director do Outra Banda e a página acabou. Entretanto, Victor Borges já
tinha desenhado cerca de 80 pranchas de “As Aventuras de Paio Peres – O Espião”.
Resolvi contactar a Meribérica, depois a Editorial
Notícias, etc... para propôr a publicação do álbum “As Aventuras de Paio Peres
– O Espião”. Nada feito. Como essa primeira história se passava em Almada (a
Al-Mahadan moura), contactei com a Câmara de Almada – eu morava na cidade há 25
anos e conhecia quase toda a gente da Câmara – não tendo sido difícil conseguir
o apoio para a edição, com a condição de que o título do álbum teria que
ostentar o nome da cidade, daí ter dividido a história em dois álbuns, dando ao
primeiro o título “Missão em Al-Mahadan”. Para editar os álbuns arranjei um
sócio investidor na pessoa do arquitecto para quem trabalhava profissionalmente
na altura. Assim nasceu a Pedranocharco Publicações, Lda.
A editora nessa primeira fase editou oito álbuns:
os quatro primeiros de José Carlos Fernandes, o primeiro de Eliseu “Zeu”
Gouveia, um outro de Victor Borges com argumento de Paulo Moreiras (actualmente
escritor com certo prestígio) e os dois de “As Aventuras de Paio Peres” –
programados para dar origem a uma série de 21 álbuns...
A Pedranocharco Publicações, Lda. encerrou em 1998
e eu recuperei o nome – sem o Lda. – e o logotipo (que haviam sido criados e
registados por mim) como chancela pessoal em 2004.
Achas
que existe um mercado de banda desenhada viável no nosso país? Há motivos para
esperar mais e melhor?
Cada vez acredito menos que haja viabilidade para
um mercado de banda desenhada em Portugal. Não tenho motivos para esperar seja
o que for. E porquê?
Acho que valerá a pena falarmos nisso.
Apesar de existirem problemas estruturais, digamos
assim, que vão do fim da publicação de BD nos periódicos (actualmente só o Nuno
Saraiva consegue essa proeza) à escassa edição em livro, especialmente a partir
dos anos 1970, a banda desenhada que se produz neste país, começou a enfermar
de um outro mal, quanto a mim grave, que é o facto de quase não existirem já
argumentistas portugueses.
Isto levou, gradualmente, a que a maior parte dos
desenhadores passassem a consideram-se “artistas” a solo. Também, porque alguns
críticos e jornalistas começaram e persistem na asneira de chamar “artistas”
aos autores de banda desenhada. Eu sei que chamam à BD a 9ª arte, o que é outra
cretinice. Mas o cinema também é designado como a 7ª arte e alguém se lembra de
dizer o “artista” Francis Ford Coppola?
Com isto desvirtuam a própria banda desenhada, que
sempre foi um produto de cultura popular (tal como o cinema) e que é, evidentemente,
servido por diversas artes. Mas é ridículo considerar, tanto a Banda Desenhada
como o Cinema, eles próprios como artes. Foi Ricciotto Canudo, no início do
século XX que inventou essa “escala das artes”, porque queria colocar o cinema a
par das artes reconhecidas. Depois, os teóricos da BD fizeram o mesmo e
designaram-na a 9ª arte. Sendo que o 8º posto dessa escala foi atribuído à
televisão (uma arte ?). Sem querer fazer publicidade, aconselho que leiam o
texto do Pedro Moura, “Razões do Desapreço pela Expressão ‘9ª arte’”, no
BDjornal #28 e percebem o que quero dizer. Isto apesar de o Pedro Moura
considerar a BD uma arte, do que eu, como princípio, discordo.
Mas vejamos, enquanto durou o boom da BD em jornais
e revistas, ela sempre foi trabalhada como numa cadeia de montagem: o
argumentista escrevia as histórias, depois um desenhador fazia o lápis das
tiras, outro dava-lhe a tinta da china (mais tarde, outro dar-lhe-ia a cor) e
outro a legendagem. E a produção era vertiginosa. Mas mesmo quando se passou à
fase dos álbuns (e estou sobretudo a referir-me ao mercado franco-belga – o
“farol” da BD na Europa) raramente houve um desenhador que escrevesse e
desenhasse histórias a solo. Porque é raro encontrarem-se talentos como Hugo
Pratt, Enki Bilal, Miguelanxo Prado, etc... (que no início das carreiras
trabalharam sempre com argumentistas) e a esmagadora maioria dos desenhadores
não tem talento para criar histórias de raíz com interesse para o público em
geral. Por isso a BD portuguesa tem, comercialmente, o mesmo problema do cinema
português: só produzem as chamadas “obras de autor”, que de um modo geral, interessam
pouco ao grande público – daí o fracasso de bilheteiras da maior parte do
cinema português e a escassez de vendas da maior parte da BD portuguesa.
E, envoltos nessa “aura” de “artistas” – que não os
leva a lado nenhum –, a esmagadora maioria dos desenhadores portugueses nem
sequer aceita trabalhar com um argumentista.
Um caso paradigmático: o Filipe Melo, para
conseguir criar o “Dog Mendonça” teve que recorrer a desenhadores argentinos,
quando existem em Portugal desenhadores tão bons ou mesmo melhores! E o “Dog
Mendonça” já vai no segundo livro, com edições sempre a esgotar. Isto quer
dizer alguma coisa.
No entanto existe uma área onde alguns desenhadores
podem encontrar fundos para escreverem as histórias eles próprios: as
autobiografias. Mas esta área é limitada e mesmo para isso é preciso que essas
peças sejam bem escritas e tenham interesse, ou que se saiba torná-las
interessantes. Veja-se o caso recente de Paulo Monteiro.
E as
obras que editaste? Fala-nos um pouco delas.
As obras que editei inseriram-se quase sempre num
princípio de que quase nunca abdiquei: chamar “à primeira linha”, digamos
assim, autores desconhecidos (ou relativamente desconhecidos). Sempre acreditei
no José Carlos Fernandes desde que, em 1992, publiquei “Singin’in The Rain” no
fanzine Dossier Top Secret nº51, co-editado pelo Victor Borges e por mim. De
maneira que foi o primeiro autor que editei – e foi também o primeiro álbum do
José Carlos Fernandes, o “Lou Velvet”(1996). Haviam de seguir-se mais três
álbuns dele, “Um Catálogo de Sonhos” (1997, reeditado pela Devir em 2005),
“Alguém Desarruma Estas Rosas e Outras Estórias” (1998) e “As Aventuras do
Barão Wrangel” (1998, também reeditado pela Devir em 2003). Editei também o
primeiro álbum do Eliseu “Zeu” Gouveia, “Medusa 31 – Et Pluribus Impar”. Para
além dos dois álbuns de “As Aventuras de Paio Peres” e de “Herminio – Regresso
a Portucale”, do Victor Borges e do Paulo Moreiras. Isto na primeira fase da
Pedranocharco.
Na segunda fase, a prioridade foi o BDjornal, iniciado
em 2005 e nele comecei a publicar autores que nunca tinham visto nada seu
publicado. Casos mais conhecidos, o Álvaro (com “Sexo, Mentiras e Fotocópias”,
que depois editei em livro), o “BRK”, do Filipe Pina e Filipe Andrade, que
viria a ser editado em livro pela Asa e o Hugo Teixeira – depois de conhecer a
página dele no deviantART.com – de quem publiquei “Os Monótonos Monólogos...”
no BDjornal e depois o “Bang Bang” em livros, e que, quando começou a trabalhar
em cor, a Asa editou-o. O caso do “Dicionário Universal da Banda Desenhada”, de
Leonardo De Sá, foi outra das matérias que foram saindo no BDjornal e a certa
altura resolveu-se fazer e editar em livro. Em 2011 fiz uma coisa que nunca
tinha feito, editar um autor já com créditos no mercado, o Fernando Relvas. Mas
esta edição foi devida ao seu regresso, depois de longa ausência na Croácia e
ao facto de que ia ter uma exposição no Festival de Beja – por isso propôs-me
editar o “Li Moonface” a preto e branco, livro que já estava publicado a cores e
em inglês, na Lulu.com. No entanto a conversão do livro para preto e branco foi
a desgraça que se viu. Mas espero vir a editar em breve o livro do Relvas que
eu sempre quis editar, o título fica no segredo dos deuses, OK?
Além
dos álbuns, também iniciaste séries como o BDVoyeur e o BDjornal. Para quem não
os conhece, em que consistem?
Trocando a ordem, o BDjornal começou por ser um
jornal, em formato tabloide, sobre BD, porque nessa altura – e agora cada
vez mais – acreditei que não era viável uma revista de banda desenhada
neste país, como se provou com a Selecções BD da Meribérica e talvez como vocês
estejam a perceber com a Zona...
Mas a génese do BDjornal começou muito antes,
quando em 1993 fiz a maqueta de um fanzine “Pedra Pomes de Bandas Desenhadas”
que nunca saiu dessa fase (embora tenha estado em exposição num dos Salões da
Sobreda BD) e de seguida editei uma folha com matérias sobre BD, a “Folha Pedra
no Charco de Banda Desenhada”, em formato A3.
Foi a “avó” do BDjornal e foi daí
que nasceu o nome da futura editora Pedranocharco. Depois em 1996 editei o nº 0
do BDinFólio, o “pai” do BDjornal, já em formato tabloide – fiz 1.000
exemplares que distribuí, gratuita e largamente, pelas Tertúlias BD de Lisboa,
Bedeteca de Lisboa (assunto da primeira página) e Festival da Amadora desse
ano. Em 1998 editei o nº 1 do BDinFólio, 2.000 exemplares, que vendi
exaustivamente nas Tertúlias BD de Lisboa, no 1º Salão Lisboa de Ilustração e Banda
Desenhada, nas instalações da Abel Pereira da Fonseca, ao Poço do Bispo, para
onde fui militantemente durante todo o Salão, o mesmo acontecendo durante o 9º
Festival da Amadora – o desse ano. Abordava todos os visitantes que conseguia e
impingia um BDinFólio, por 300$00 (cerca de € 1,50). Foi épico, o Pedro Brito,
por exemplo, ainda se lembra disso – às vezes gozamos com esses tempos um
bocado loucos. E esgotei todos os exemplares.
O BDjornal nasceu dessa experiência e da edição
mensal do fanzine BDpress (15 números), onde republiquei, todos os meses, de
Abril de 2004 a Maio de 2005, recortes de textos sobre BD que iam saindo em
quase todos os jornais e revistas deste país. Com a embalagem ganha, comecei o
BDjornal, que foi mensal durante um ano – e a trabalheira que deu fazê-lo a
esse ritmo, tornou-se infernal, pelo que (e também por factores financeiros)
passou a bimestral na segunda fase. A seguir veio uma terceira fase em que
passou ao formato de revista, também bimestral. Em 2009 parei durante um ano
com a edição, para reformular o conceito da revista e recomecei, numa quarta
fase, no mesmo formato, mas com periodicidade semestral. Creio que se adequa
melhor à escassa procura que há em Portugal, embora a procura do BDjornal no
Brasil esteja a aumentar de edição para edição.
Tive sempre a preocupação de procurar um equilibrio
no BDjornal, entre matérias um pouco mais académicas sobre BD, até às mais
populares (como os textos sobre as edições Bonelli/Mythos, por exemplo),
passando pela crítica de livros, reportagem/crítica sobre exposições,
festivais, etc... e grandes entrevistas com autores, editores, organizadores de
eventos, etc...
Quis também que a coisa funcionasse (e isto desde o
início) como ponto de encontro para toda a banda desenhada de língua
portuguesa. Infelizmente a produção dos PALOP não tem ainda a qualidade a que
estamos habituados, de modo que a maior fatia da colaboração no BDjornal extra-portuguesa,
tem sido a brasileira e, num breve espaço, que espero retormar, a galega – não
nos esqueçamos que a língua galega é a “mãe” da língua portuguesa e uma grande
percentagem dos galegos quer fazer parte do espaço lusófono.
Quanto à BDVoyeur, pretendi iniciar uma publicação anual
com banda desenhada portuguesa para adultos, com inclusão de alguma matéria de
informação e divulgação do que se faz no resto do mundo e dando também a
conhecer autores estrangeiros nessa área. Infelizmente ainda só editei dois
números, embora tenha o terceiro pronto, mas as despesas com o BDjornal
absorvem sempre quase todas as verbas.
O BDjornal
ainda se encontra em actividade, neste momento com uma periodicidade anual.
Quais são os teus planos para o futuro relativamente à publicação?
Para já, o BDjornal é semestral, não anual! Quanto
ao futuro, espero continuar esta fase até ao #30 – que sairá em Outubro deste
ano. Depois logo verei se, ou como, a coisa continuará. Ainda é cedo, embora já
esteja a trabalhar para esse futuro.
Às
vezes também te aventuras na escrita de argumentos. Como correram as tuas
experiências como autor, até à data?
Como já disse acima, a certa altura deixei praticamente
de desenhar, passei a escrever e, o que foi pior, passei a editar. Ora, como
disse alguém, a pior coisa que pode acontecer a um autor de BD (sobretudo se
for desenhador) é tornar-se editor. Isto porque, para além de se tornar num
editor com problemas financeiros (porque nunca terá estaleca para o negócio),
deixa de ter tempo para desenhar – e o desenho é uma ocupação a tempo inteiro.
Portanto, como autor e também como editor, sinto-me bastante frustrado. Por
isso é que disse atrás que, se calhar um dia destes borrifo-me para a BD (se
conseguir) e volto à pintura, talvez quando já estiver “lelé da cuca” como também
dizem os brasileiros.
Como desenhador, nos últimos vinte anos, só
desenhei as trinta e duas pranchas de “Corpo a Corpo”, de pornografia pura
(faltam publicar doze pranchas), para a BDVoyeur, as quatro pranchas de “O
Regresso de Valentina”, para o fanzine Eros #10 – Especial, de Geraldes Lino e
a prancha de “Corto Maltese no Século XXI”, para o fanzine Efeméride, também editado
por Geraldes Lino. E isto, foi porque Geraldes Lino (abençoado seja) é pior que
a “melga”, quando agarra não larga...
Como perceberás, é frustrante. Até mesmo em matéria
de argumentos, que são, em princípio, mais rápidos de escrever e menos
exclusivistas na dedicação do que o desenho, tenho dez argumentos iniciados, à
espera, talvez, que vá para uma qualquer ilha deserta, longe dos problemas da
edição e do trabalho profissional como designer gráfico, para os terminar. Isto
porque não sei fazer argumentos para histórias curtas e os que faço levam-me
sempre a pesquisas, por vezes intermináveis, à procura de quaisquer dados que
me faltam. Aliás o único argumento para história curta que fiz, foi para o
Vitor Borges, em 1999, para participação na exposição/catálogo “Uma Revolução
Desenhada: o 25 de Abril e a BD”, onde o meu
nome nem sequer consta.
Sei
que tens alguns projectos pensados que nunca avançaram. Há alguma surpresa
guardada para o futuro? O que podemos esperar da tua parte e da tua editora?
Bem, os projectos pensados, são sempre a
salvaguarda para o futuro – pelo menos é o que queremos pensar disso. Em
matéria de edição, para além do BDjornal #29 e #30, está a ser preparada uma
co-edição com o Wagner Macedo (vendedor exclusivo e representante do BDjornal
no Brasil) para um álbum de Julio Shimamoto. E gostaria de realizar uma grande
exposição sobre este “samurai dos quadrinhos”
para a qual já tenho oitenta e tal cópias de grande qualidade, de várias
fases da sua obra. Depois há o projecto do álbum do Relvas. E vou tentar editar
a BDVoyeur #3 em 2013.
O último projecto que concretizei, foi a Livraria
Pedranocharco Online, pensado já há muito tempo e só agora concretizado em http://pedranocharco.shopmania.biz/.
Trata-se da primeira livraria de banda desenhada online portuguesa, onde espero
vir a ter muitos dos títulos de BD portuguesa disponíveis. Já lá estão edições
da Pedranocharco (obviamente) e também, da Libri Impressi, Chili Com Carne,
MMMNNNRRRG, Edições Polvo, as revistas Zona, Edições Nova Vega, uma série de
fanzines, livros de autor, etc... Vamos ver no que vai dar.
Quanto a surpresas, infelizmente, só se forem
também surpresas para mim é que acontecerá alguma.
Em
jeito de balanço, e embora se adivinhem muitas mais, quais as recordações que
guardas com maior carinho. Tertúlias com autores, apresentações de obras,
momentos caricatos... Podes partilhar alguns episódios?
As minhas melhores recordações são, para começar,
dos Festivais da Amadora, onde vou desde 1992 (3º FIBDA) e em que, a partir de
certa altura estive presente todos os fins-de-semana – sendo que no de 1998,
como disse atrás, estive lá todos os dias a vender o BDinFólio – e com mais
“militância” a partir de 2005, desde que
tenho stand em todas as edições do Festival. Devo mesmo ser o maluco com maior
número de dias de presença nos últimos 19 anos de Festival. Depois, as
Tertúlias BD de Lisboa que frequentei religiosamente todos os meses desde 1997
até Janeiro de 2011. Só desde que passei a morar em Caldas da Rainha (Fevereiro
de 2010), é que frequento a Tertúlia com menos assiduidade. E há os Salões de
Moura e de Viseu, de que guardo grandes recordações. Ou do Festival de Beja,
que é muito especial para mim, porque começou em 2005 e o primeiro número do BDjornal
foi lançado lá.
Mas o Festival de que guardo particulares
recordações, inesquecíveis até hoje, foi o último que se realizou no Porto, em
1999. Talvez porque tenha sido o único a que fui. E foi uma “aventura” em
grupo, a ida a esse Festival. Desta maneira: a Bedeteca de Lisboa organizou em
conjunto com a Associação do Festival de BD do Porto, os Colóquios “Hoje a BD”,
que decorreram no Teatro Rivoli. E o pessoal de Lisboa foi de comboio, em
excursão, até ao Porto, para participar na coisa. Dos “Colóquios” pouca coisa
recordo, mas do ambiente e do convívio, foi muito marcante. Foi, por exemplo,
onde conheci pessoalmente toda a gente do Atelier Toupeira de Beja (com os
quais me correspondia) e que mais tarde organizaria o Festival de BD de Beja.
Já os episódios mais caricatos, ocorreram quase
sempre nos Festivais da Amadora, quando este decorria na Fábrica da Cultura, obviamente.
Lembro-me por exemplo, do episódio que ocorreu no Festival de 1995. Eu e o
Victor Borges montámos pessoalmente a exposição sobre “As Aventuras de Paio
Peres”, em que o objecto marcante da cenografia era uma porta “moura” com cerca
de cinco metros de altura, feita em relevo numa das paredes da Fábrica da
Culturas e por cima da qual “esvoaçava” uma gaivota em esferovite com dois
metros de envergadura. À frente da porta estavam as três personagens principais
da história desenhadas em tamanho natural, coladas em esferovite recortada e
apoiadas (pregadas em apoios) no chão. Pensámos que seria engraçado suspender a
gaivota com fio de pesca grosso, da estrutra metálica do telhado do edifício –
para quem se lembre da Fábrica, sabe que essa estrutura estava a mais de dez
metros de altura. Para isso precisávamos de qualquer coisa que chegasse lá
acima para passar o fio, etc... e chamámos o director do Festival, o Luís
Vargas. Quando ele chegou ao nosso espaço e viu aquela porta gigantesca, ia-lhe
dando uma coisa má e desatou aos berros. “Os elementos das exposições não podem
passar dos três metros!”, “Tirem isso tudo daí!!!” Estávamos a poucas horas da
inauguração. Depois dele se ir embora, desatámos a rir, até que eu disse: “Ok!
Não há tempo para desmontar nada... Prega-se a gaivota na parede, por cima da
porta e pronto, está feito!” Claro que durante a visita do Presidente da Câmara,
na inauguração, Luís Vargas disse-nos entre dentes, com ar de poucos amigos
“Vamos ter de falar a sério sobre isto mais daqui a pouco”, o que nunca
aconteceu.
No ano seguinte montámos de novo uma exposição,
desta vez no espaço de acesso ao Auditório do Festival. Eram pranchas de
“Herminius – Regresso a Portucale”, de “Um Catálogo de Sonhos” do José Carlos
Fernandes e uma série de pranchas do grupo do Pedro Potier, Eliseu “Zeu”
Gouveia, etc... Quase no final da montagem achei que aquilo estava muito “nú” –
faltava qualquer coisa. Fui dar uma volta pelas outras exposições e encontrei o
Fernando Relvas, que ia ter uma exposição individual. Andava com uma fita na
cabeça, à ninja, a empurrar um carro de mão das obras, a acartar terra e pedras,
do exterior da Fábrica, para o meio do espaço da exposição dele. Perguntei-lhe
qual era a ideia. “Eh pá, estou a fazer uma ‘instalação’ ali no meio, porque
aquilo parece o Terreiro do Paço”. Claro que, quando o Luis Vargas viu a
“instalação”, por pouco não teve uma apoplexia e depois de muita barafustação,
mandou o pessoal da Câmara retirar a terra toda. Mas aquilo fez com que eu fosse
à rua ver o que havia por lá e reparei nos ramos dos arbustos de uma sebe. Começámos
a arrancar ramos da sebe e a pregá-los nas paredes da exposição, até aquilo
parecer quase uma floresta. Devo dizer que o espaço ficou com um aspecto
estranho para uma exposição de BD (ou outra qualquer), mas interessante.
Felizmente o director do Festival só viu aquilo no dia seguinte à inauguração e
já não estava para se chatear. Infelizmente, o diabo dos ramos foram murchando
ao longo do Festival e no final, o aspecto da coisa era completamente de partir
a rir.
Claro que nada disto poderia acontecer actualmente,
no espaço institucional, pomposo e circunspecto em que o Festival da Amadora se
transformou. E é por isso que existem tantos saudosos da Fábrica da Cultura,
onde havia, de facto, a Festa da Banda Desenhada em Portugal...
Se
pudesses pedir 3 desejos para a BD nacional, para os seus autores, editores,
leitores... Quais seriam?
A – Que os autores portugueses de banda desenhada
desatem os nós que têm nas cabeças e comecem a produzir obras que não sejam
apenas para eles próprios e para os amigos, deixando de alimentar os seus egos
e começando a alimentar um público. Pode ser que assim surjam mais “Dogs
Mendonças”...
B – Que aqueles que escrevem argumentos e não os
conseguem desenhar com qualidade (quase sempre, eles pensam que têm qualidade,
mas o espelho está baço pela auto estima insuflada e engana-os), deixem de
rabiscar coisas sem qualidade e se concentrem na nobre tarefa da escrita para
banda desenhada. Porque desenhadores, nós temos uma legião deles de grande
qualidade.
C – Que os autores deixem de carpir por não haver
editores nem mercado. Agrupem-se, criem equipas ou estúdios (lembro o Lisbon
Studios...) e produzam cirurgicamente para um mercado – deixem as “obras
primas” para mais tarde. Vão às escolas interagir com os miúdos, em workshops,
ou apresentações, de maneira a começarem a formar um público. Quando existirem
obras de BD viradas para o público, haverá sempre quem as edite!
Eu sei que isto é quase pedir que se comece de
novo. Não traz sucesso imediato, claro. Mas parece-me que é mesmo preciso
começar de novo!
Machado-Dias: Falando de ti próprio, retrataste realisticamente vinte anos da História da Banda Desenhada em Portugal.
ResponderEliminarGL
É verdade, sim senhor. Penso que toda a entrevista tem muito interesse. Abraço para ambos.
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